Wednesday, October 04, 2006

Redes

Convidamos Eduardo Marques para escrever um poster sobre redes, um recurso que é, ao mesmo tempo, teoria e instrumento e que vem atiçando a curiosidade dos cientistas políticos e sociais. Abaixo a excelente descrição do campo:

Os mecanismos relacionais[1]

Eduardo Cesar Leão Marques

DCP/USP e CEM/CEBRAP

Em um sentido abstrato, a discussão sobre mecanismos relacionais se confunde com a própria análise da política, visto que o poder tem uma natureza intrinsecamente relacional. Entretanto, a maior parte das linhas de análise da política historicamente buscou elementos explicativos localizados em duas escalas opostas de abstração – de um lado nas estruturas e nos sistemas sociais e do outro nos indivíduos e nos processos de decisão individual, mesmo que pensadas estrategicamente. Apesar disso, grande parte dessas análises incluiu e levou em conta as relações, embora de maneira contextual e metafórica.

A partir dos anos 1970, entretanto, se desenvolveu um programa de pesquisas sobre a política focada no nível intermediário e concentrada na análise dos padrões de relações de indivíduos, organizações e entidades que cercam as situações sociais. Esses padrões de relação estariam presentes em praticamente todas as dimensões sociais, sendo muito difícil estudar fenômenos sociais sem considerá-los, como no caso dos fenômenos econômicos, por exemplo (Granovetter, 1985). Em termos concretos, a análise de redes reproduz os contextos sociais relacionais dos mais variados tipos nos quais se inserem os atores sociais através de representações gráficas e matemáticas. Nas análises desse tipo, pessoas, grupos, organizações e entidades são representadas como nós e as relações são representados como vínculos dos mais variados tipos. Os vínculos podem ser materiais e imateriais, podem apresentar conteúdos múltiplos e usualmente são pensados como em constante transformação.

Na verdade, as análises tentam sempre reproduzir através das redes certas estruturas relacionais de médio alcance, que podem ser levantadas e estudadas de forma dedutiva, construindo um nível analítico intermediário entre estrutura a ação social. A tarefa é de certa forma similar à estabelecida com o espaço pelos sociólogos urbanos marxistas nos anos 1970 (Castells, 1980) ou com as instituições pelos neoinstitucionalistas nos anos 1980 (Skocpol, 1985).

As redes podem ser consideradas apenas de maneira metafórica (como em diversas tradições das ciências sociais que usam as redes em termos descritivos e discursivos, tanto classicamente como em período recente), como prescrição normativa para uma dada situação (como em estudos em administração de empresas, por exemplo) ou como um conjunto de ferramentas analíticas para o estudo de situações sociais específicas através do estudo das conexões sociais nelas presentes. Este texto apresenta os contornos gerais dos elementos trazidos por essa última acepção, pois acredito que o avanço mais importante possibilitado pela literatura recente está na utilização das redes como método de investigação, conformando o que se denomina especificamente de análise de redes sociais. Isso porque em diversas situações sociais, os padrões de relação apresentam complexidade tão elevada que não podem ser analisados satisfatoriamente através de narrativas que explorem as redes metaforicamente. No caso dos fenômenos com padrões relacionais de baixa complexidade, evidentemente, a estratégia de se lançar mão de metáforas continua sendo proveitosa analiticamente e a análise de redes talvez represente uma escolha metodológica inadequada, por adicionar desnecessariamente novos aspectos técnicos e conceituais.

O fundamento teórico básico da análise de redes sociais é que os fenômenos sociais têm como sua unidade básica as relações sociais, e não os atributos dos indivíduos. Neste sentido, o mundo social seria constituído ontologicamente por padrões de relação de vários tipos e intensidades em constante transformação. Na formulação das primeiras sínteses teóricas sobre o problema, atributos e relações eram pensados como elementos em oposição (Emirbayer, 1997) de uma forma um tanto o quanto reducionista. Contemporaneamente, os dois elementos são pensados em associação, visto que em muitas situações sociais, entidades com atributos comuns têm maior probabilidade de estabelecer relações do que outras pela presença de mecanismos de homofilia (Kadushin, 2004). Ao mesmo tempo, relações ajudam a construir atributos de vários tipos, sendo muitas vezes difícil estabelecer uma direção causal única.

Como a ciência política envolve centralmente as dinâmicas do poder político (institucionalizado ou não), e como este apresenta uma intrínseca natureza relacional, o estudo das redes sociais de diversas presentes nas mais variadas situações sociais, pode nos ajudar bastante. Para concretizar um pouco mais o argumento, apresento alguns exemplos de aplicações da análise de redes às várias áreas de estudo e fenômenos da política. As análises envolvem por exemplo o estudo da possível influência dos padrões de relacionamento em mobilizações coletivas, seja em estudos de corte mais tradicional (Gould, 1991), seja mais contemporâneos centrando a atenção em questões como as dimensões discursivas da ação política (Mische e White, 1998). De forma similar, a literatura investigou as influências das redes no comportamento eleitoral (Niuwbeerta e Flap, 2000) e na estruturação dos partidos políticos (Hedstrom et. al, 2000). Os estudos de elites políticas também representam um importante campo para os estudos das redes, seja estudando apenas as relações internas à elite política (Gill-Mendieta e Schmidt, 1996 e Del Alcazar, 2002) e à elite econômica (Minz e Schwartz, 1981 e Kadushin, 1995), seja ligando elites políticas e econômicas (Laumann et al., 2002). Um outro conjunto de trabalhos investiga os padrões de relações no interior do Estado para as burocracias, agências estatais e políticas públicas (Marques, 2000 e 2003) e especificamente sobre os processos de produção de políticas (Knoke, 2003 e Laumann e Knoke, 1987). Como a análise de redes permite a realização de estudos detalhados sem o pré-estabelecimento das fronteiras entre Estado e sociedade, representam também uma importante fronteira para a análise das atividades de lobby (Heinz et al., 1997), das novas institucionalidades representativas como os conselhos tão disseminados no Brasil atualmente (Schneider et al., 2003), assim como o estudo das relações entre público e privado em contratações de empresas privadas (Marques, 2000 e 2003).

As ênfases dos estudos são bastante variadas, mas os estudos de redes envolvem em termos gerais pelo menos 3 tipos de análises. O primeiro tipo envolve investigações dos efeitos sobre os fenômenos políticos da posição dos atores nas redes em que se inserem. Essas posições: a) alteram os resultados; b) influenciam as ações, estratégias, alianças e oposições e c) influem inclusive sobre propensões cognitivas dos atores que poderíamos classificar como preferências. O segundo tipo de uso analítico das redes inclui as análises dos efeitos da estrutura da rede em um dado caso sobre os fenômenos existentes naquele caso. Nesse caso, os estudos exploram analiticamente a conformação geral de densidades, os padrões de contigüidade, conectividade e distâncias diferenciados presentes na rede social de uma dada situação. Por fim, o terceiro conjunto de trabalhos explora os efeitos de tipos diferentes de estruturas sobre tipos de fenômenos. O foco nesse caso está na comparação entre estruturas de várias redes de um mesmo tipo. Na verdade, essas três estratégias analíticas foram enfocadas por três gerações distintas de estudos a partir da década de 1970 focando a conectividade, a estrutura, as comparações entre estruturas e tipos de redes, objetivando generalizações mais amplas. Em todos os casos, as redes podem ser conceituadas para reproduzir os padrões de relação centrados em indivíduos (pessoais ou até egocentradas, englobando apenas os conjuntos diretos de contatos de um dado ego e seus contatos entre si) ou em contextos relacionais amplos, modelando o tecido relacional de uma dada situação social (as chamadas redes totais).

Como todas as estruturas, as redes tendem a apresentar elevada permanência no tempo. Isso ocorre porque, embora as redes estejam continuamente mudando através da construção ou do rompimento de vínculos, a parcela em transformação tende a ser relativamente pequena comparada com o conjunto dos vínculos. Além disso, estudos recentes explorando as estruturas das redes em geral sugerem a existência de elementos que fazem parte do comportamento matemático das redes (Watts, 1999) e que lhes dariam elevada permanência, mesmo quando ocorressem elevadas mudanças de vínculos. A combinação desses dois elementos faz com que as redes apresentem ao mesmo tempo forte dependência da trajetória, em especial com relação à estrutura, e tendências constantes de mudança, principalmente em termos localizados.

Um outro elemento importante a destacar diz respeito aos elementos que compõe as redes. As redes incluem entidades de vários tipos, como indivíduos, famílias, grupos, organizações etc. Na verdade, esses agrupamentos institucionais e grupais também incluem indivíduos em seu interior e se conectam muitas vezes através deles. As entidades nas redes, portanto, estão sempre submetidas a uma natureza dual entre indivíduos e grupos e organizações (Breiger e Mohr, 2004). Como muitas das outras dimensões da análise de redes, a questão de quais serão as nossas unidades de análise depende intrinsecamente das perguntas envolvidas e é resultado das escolhas do analista.

Por outro lado, os vínculos incluídos na análise podem envolver as mais variadas dimensões das atividades sociais, incluindo tanto elementos materiais, como dinheiro e mercadorias, quanto imateriais como informações, afetos e idéias. Uma outra dimensão analítica que deve de alguma forma ser conceituada, portanto, diz respeito aos tipos de vínculo incluídos nas análises. Eles podem incluir virtualmente qualquer coisa, mas o analista deve tomar os cuidados devidos, quaisquer que tenham sido as suas escolhas.

A essa dimensão se soma outra ligada à intensidade dos vínculos. No início da análise de redes se considerava a questão genericamente, até que Granovetter (1973) demonstrou a importância fundamental dos vínculos fracos para a difusão de informações associadas a emprego. Após três décadas de pesquisas sobre o assunto, podemos dizer hoje que tanto vínculos fracos quanto fortes são importantes, mas para fenômenos distintos. Os vínculos fracos são muito capazes na veiculação de informações inovação e na construção de coordenação em ações de diversos tipos. Os vínculos fortes, por outro lado, são importantes quando estão envolvidos fenômenos de coesão, comando e relações mais verticalizadas. Os dois tipos de vínculos podem ser importantes na mesma situação, como mostra o trabalho de Carroll e Fennema (2002) sobre a comunidade dos negócios em nível internacional.

Os vínculos citados acima podem ser tanto formais quanto informais, evidentemente. Na verdade, uma das potencialidades trazidas pela análise de redes diz respeito exatamente a esse ponto. Com o uso do método, pela primeira vez é possível considerar esses dois tipos de vínculos de forma conjunta e sistemática. Embora nem toda a literatura trabalhe dessa forma, a incorporação de vínculos informais e não intencionais vem enriquecendo o estudo de elites econômicas, como no caso de Kadushin (1995), assim como atores estatais e não estatais na produção de políticas públicas (Marques, 2004). No que diz respeito especificamente à produção de políticas públicas, um de meus campos particulares de trabalho, a incorporação das redes informais e não intencionais construídas ao longo da formação dos diversos campos de política parece ser um promissor desenvolvimento para a realização de estudos das políticas mais próximos da política e da realidade empírica (Marques, 2006).

No que diz respeito ao comportamento dos atores, a sociologia relacional não tem pressupostos quanto à racionalidade dos atores, e análises conjuntas utilizando redes e perspectivas da escolha racional são absolutamente compatíveis. A análise de redes é apenas incompatível com a adoção de princípios estritos de individualismo metodológico, mas pode ser utilizada mesmo quando se utilizam ferramentas de estudo de situações estratégicas interdependentes, como a teoria dos jogos. Na verdade, a análise de redes indica apenas como funciona um dos settings em que os indivíduos estão inseridos, sendo compatível com vários pressupostos de racionalidade.

Os padrões de relação, entretanto, especificamente, parecem ser uma conjugação entre ação orientada a fins e acaso, além de uma estrutura e uma grande quantidade de vínculos herdados pela trajetória prévia das redes. Como cada ator individual não tem controle sobre a estrutura das redes e sobre as posições dos demais atores, mesmo que haja racionalmente para construir e desmontar vínculos, os atores conseguirão influenciar apenas uma parte muito pequena no tecido relacional em que se inserem.

Todas as dimensões enfocadas sugerem que a análise de redes envolve um grau elevado de escolha da parte do analista no que diz respeito à conceituação dos elementos relacionais presentes na situação estudada. Essa característica não trás em si nada de problemático, desde que as escolhas sejam apropriadas às perguntas formuladas e se desdobrem em estratégias e instrumentos de pesquisa também apropriados. Entretanto, essa estratégia da análise de redes baseada sempre em estudos de caso, tende a produzir especificidades para as suas possibilidades de generalização. Nos casos de programas de pesquisa baseados em estudo de casos, a capacidade de generalização vem com as comparações, variando os elementos presentes e investigando detalhadamente a combinação dos fatores causais em cada conjunto de casos em particular. Assim, apenas a realização de muitos estudos comparativos de redes em situações sociais distintas pode, no médio prazo, nos sugerir quais os tipos de influências que elas provocam, dadas as circunstâncias e processos presentes. Embora ainda estejamos longe desse momento, avançamos consideravelmente nas últimas três décadas na compreensão das características, do funcionamento e das conseqüências das redes sociais.

Bibliografia

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[1] Este texto resume participação na mesa redonda “Métodos e Explicações da Política – Para onde nos levam os caminhos recentes?” no XXIX Encontro Anual da Anpocs.

Monday, September 11, 2006

Os métodos e seu lugar

Uma antropóloga, Letícia Veloso, e um sociólogo/cientista político, Gláucio Ary Dillon Soares, partiram do princípio de que a oposição entre métodos quantitativos e qualitativos é falsa. Pior do que falsa, é prejudicial. Por isso, resolveram criar esse blog para discutir questões de método, divulgar e descrever novas técnicas e suas utilizações e, particularmente, enfatizar os benefícios do uso conjunto de métodos qualitativos e quantitativos. Quali E quanti.